Harvey Pekar - O fim do esplendor americano

por Diana Garrido
14.07 2010

Morreu o criador e personagem central da banda desenhada "American Splendor"
Cancer linfático e de próstata, asma, tensão alta e depressão clínica. Harvey Pekar tinha tudo menos saúde. O autor da banda desenhada mais amarga do mundo morreu ontem aos 70 anos. Encontrado em casa pela mulher, Joyce Brabner.


Apesar de não ter sido um super-herói, foi na banda desenhada que Pekar encontrou o esplendor. Não saltava de edifícios altos, não via através de paredes, não salvava ninguém: protestava, zangava-se, debatia-se com a angústia e a solidão e ironizava o modo de vida americano.

"O humor do dia-a-dia é muito mais engraçado do que aquele que os comediantes fazem na televisão. É o que acontece mesmo à nossa frente quando não há rotina e tudo é inesperado. É sobre isso que quero escrever", disse em tempos Pekar.

"American Splendor - From off the streets of Cleveland" é isso mesmo: o quotidiano da classe trabalhadora americana, deprimida, angustiada e irritada - como Pekar - que só quer chegar inteiro ao fim do dia. Harvey Pekar não só foi autor, mas também personagem principal.

Durante 40 anos, trabalhou como arquivista num hospital de veteranos, passando para o papel os seus problemas diários: triviais e à primeira vista desinteressantes. Carro avariado, discussões com colegas de trabalho, crises familiares e problemas de saúde - havia espaço para tudo.

A obra
O alterego de Pekar nasceu em 72, inspirado pelo trabalho em HQ de R. Crumb, um artista em ascensão. Harvey Pekar escreveu a primeira tira e Crumb ilustrou-a. Estavam lançados os dados para 35 anos de banda desenhada autobiográfica. "Havia tantas coisas que se podiam dizer através da banda desenhada e ninguém o fazia, por isso decidi experimentar. Nem que só servisse para me transformar em nota de rodapé na História", explicou Pekar em entrevista à revista "Interview", em 2009.

Apesar de sempre se ter queixado que a HQ não rendia dinheiro, a obra foi sempre aclamada. Em 87 ganhou o "American Book Award" pela primeira antologia de "American Splendor", foi convidado habitual no programa "Late Night", de David Letterman" e em 2003 viu vida e obra adaptadas ao cinema (com Paul Giamatti no papel de Harvey Pekar) e ganhar o prémio do júri no festival de Cinema de Sundance.

Harvey Pekar nasceu em 1930, em Cleveland, filho de emigrantes polacos judeus. Cresceu numa vizinhança difícil onde os miúdos implicavam e gozavam com ele, experiências relatadas nas tiras. O que pouca gente sabe é que Pekar não era só amarguras e paranóias: foi um erudito crítico literário e de jazz.

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Harvey Pekar - funcionário público

por Cristóvão Gomes
04.06. 2010

Há aquela imagem romântica do funcionário público, um homem em quem ninguém repara, perdido na inanidade das tarefas que executa com zelo - mas que quando soa a hora da saída se transforma num génio.

Harvey Pekar é um deles. Foi durante anos funcionário num hospital, onde recolhia os quadros médicos perdidos. A função não exigia talento nem habilidade. Bastava observar. A HQ chegou depois, através do jazz. Partilhava este interesse com Robert Crumb, com quem percebeu que havia HQ para além da que lera na infância.

Reparou que o que não havia era realismo. As outras formas de arte tinham conhecido movimentos que se centravam no quotidiano e o transformavam em arte. A HQ não. Ora Pekar era um conhecedor dos longos bocejos do dia-a-dia: um emprego menor, um apartamento pequeno e tendência para dar demasiada importância às insignificâncias da vida.

Enfurecia-se quando não encontrava a chave de casa, exultava quando descobria uma moeda. Começou a escrever guiões e acumulou-os anos a fio. Em 72, durante uma visita de Crumb, decidiu mostrá-los. Crumb gostou, desenhou as histórias e divulgou o novo talento.

Em 75, a HQ e o jazz voltam a cruzar-se na sua vida. Queria escrever histórias mais longas, mas nenhuma revista aceitava publicá-las. Fundou então a sua, mas para a financiar teve de vender alguns dos seus discos mais valiosos. Assim nasceu a American Splendor. O seu último trabalho é o Pekar Project, um webcomic publicado no SmithMag. Mais um tratado de observação.
por Cristóvão Gomes
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