Caetano Veloso.
Como se o Zé Carioca
cantasse o mundo todo

por Tiago Pereira
22.07.2010

Antes dos concertos em Lisboa e no Porto, na próxima semana, o músico brasileiro fala sobre as canções que hoje o seduzem e o país que vai descrevendo, politicamente cantando

Afinal, o samba não nasce com o brasileiro. Tudo não passa de um mito carioca, espalhado pelo colonialismo popular do Rio de Janeiro.

Se Caetano Veloso nos diz que não acredita em coisas inatas, é nesse mandamento que devemos ter fé. Olhemos do lado de cá do Atlântico para um dos culpados de darmos por nós a cantar com sotaque de telenovela.

Tem a legitimidade toda do seu lado para confessar que ainda gosta de Pixies, que "Lula deu muita sorte" e que "o Brasil não vai continuar no mesmo ritmo por muito tempo".

Mas não falamos nós com Veloso porque na próxima semana vai fazer seus os palcos portugueses? É, mas "zii e zie", o disco que editou no ano passado e que é a banda sonora oficial das datas em questão, faz-se tanto de tradição brasileira como de histórias de política e coisas das ciências sociais. Canta Caetano no tema "Lapa": "Amo o nosso tempo". Nada a fazer, portanto.

Caetano Veloso tem 67 anos, a idade perfeita para que os seus fãs se admirem e digam "já? não é possível...".

Mas é tambem a mesma que lhe permite citar Clementina de Jesus - nome mítico entre as vozes que fizeram a história do samba - e Céu - novo valor da música brasileira e sua aposta pessoal.

Tudo no mesmo período artístico: "O Brasil é um caldeirão. É mesmo, não é invenção, não. Vou de Francisco Alves [o rei da voz do carnaval da Bahia] a Arto Lindsay ou Sonic Youth".

Mas no meio de toda esta confusão, o que fazer com a imagem clássica de Caetano, o tropicalista apaixonado pelo violão, que de revolucionário da música pop se transformou num dos grandes nomes FM dos anos 90?

Nada, isso foi nevoeiro de rádio. O homem vive do nervo do momento: "Agora tenho um grupo muito especial, nunca tive uma banda que entendesse tão prontamente as minhas ideias [a banda Cê, que o acompanha]". E nos intervalos deste desvario criativo, o lazer: "Pego no violão de vez em quando, para cantar outros autores."

Desde o Pão de Açúcar
E basta isto a Caetano para destruir os dogmas da MPB num par de discos. Primeiro, o punk carioca de "Cê", depois o samba de rotação controlada e electrificada de "zii e zie". Uma espécie de ansiedade juvenil, a puberdade musical outra vez a fazer das suas.

E o Rio de Janeiro de novo como cidade favorita. "O Rio é o tema central de "zii e zie" como nunca foi de nenhum álbum meu", diz o fã do Verão eterno, que ainda acrescenta o roteiro ideal para o visitante que mal sabe o que o espera para lá do calçadão: "Quem vai ao Rio tem de ir à Floresta da Tijuca, à Urca, à Marechal Hermes e, tarde da noite, ao Baixo Leblon. Passar uma noite de sexta ou de sábado na Lapa. Se der, ir a um baile funk."

Caetano Veloso encontra nas maravilhas desta cidade o reflexo de um Brasil "em crescendo rápido", que descobriu novo fôlego e que não pode "cair em regressão" após as próximas eleições: "Se alguém dissesse, lá pelos anos 80, que teríamos Fernando Henrique [Cardoso] e Lula como presidentes sucesivos, que suas presidências seriam ambas produtivas, esse alguém seria chamado de optimista delirante. Seria sonhar alto de mais. No entanto, foi o que aconteceu."

Caetano Brasileiro
O músico é leitor de jornais e espectador de noticários televisivos. Vai daí, escreve canções como quem faz ficção partindo da realidade. Em "zii e zie" transforma tudo em refrães.

Mas à conversa não se preocupa com grandes melodias, diz tudo como quem desabafa: "O Brasil, com seu hábito de sentir-se um eterno fracasso histórico, tem de começar a se acostumar a este lado positivo da sua existência. Começámos a diminuir o abismo social em 2001, resultado da implantação do real e das políticas sociais que Cardoso iniciou e Lula desenvolveu. Esse é o maior passo dado pelo Brasil nesses anos e é mostrar-se capaz de levar isso muito mais longe que é a tarefa da futura administração."

Tudo de um só fôlego, sem hesitar, Caetano o esclarecido. Nada disso - esclarecidos são os que agora aprenderam e se preparam para surpreender.

O cantor, compositor escritor e o que mais houver pelo caminho tem a mania (com tudo o que a palavra pode ter de saudável) de querer saber tudo e a tempo de o cantar, ainda que se diga "mal compreendido" de quando em vez: "Li num jornal português uma ridicularização injusta da canção ‘A Base de Guantánamo’. O idiota que escreveu, em tom de direita deslumbrada, supõe que é um hino a Cuba e uma agressão aos EUA. Na verdade Fidel Castro escreveu pessoalmente contra mim. Só um tolo não vê que a letra tem como pano de fundo a certeza de que os EUA são um país muito mais comprometido com os direitos humanos do que Cuba. Sou demasiado independente para esses malucos."

A realidade é quase tão inata junto de Caetano Veloso como o samba, que não o é "mas quase nasce connosco". Os dois, com banda e electricidade, vão estar ao vivo em Portugal na próxima semana.
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