Entrevista - "dottoressa" Anna Canepa

"Em tempos de crise, a máfia é a única empresa com dinheiro líquido para reinvestir"

por Cláudia Garcia
08.06 2010

Com 28 anos terminou o estágio e foi nomeada magistrada na Sicília. A "dottoressa" Anna Canepa começou a sua luta contra uma das maiores redes no mundo de crime organizado, no epicentro da máfia italiana, e chegou a sofrer ameaças. Em 92, enquanto a Itália digeria o assassinato de Giovanni Falcone - juiz italiano especializado em processos contra a máfia siciliana -, Canepa foi transferida para a direcção distrital de Génova. Hoje, aos 51 anos, vive em Milão e passou por Lisboa para um encontro entre procuradores. Mais do que opiniões, Canepa preferiu falar sobre factos.

Há uma máfia ou várias?

Em Itália, o nome máfia é associado à Casa Nostra siciliana. Porém, quando falamos em máfia, estamos a falar de todas. As principais são três: a máfia siciliana, a Camorra de Nápoles e a Adragna da região da Campânia. No tráfico de estupefacientes, a Adragna é seguramente a maior da Europa e acredito que do mundo.

É verdade que a máfia italiana nasceu da desunião entre o Estado e o povo?
Esse é um ponto de vista histórico e não judiciário. A máfia nasce com a unificação de Itália, há 150 anos. É um problema de estrutura da sociedade italiana, principalmente da sociedade meridional. O erro é considerá-la uma emergência.
A Direcção Nacional Antimáfia foi criada para acabar com o problema que existe desde 1860. Mas em 2010 ainda não conseguiram enfraquecê-lo. É um facto! Obtém-se resultados, mas a máfia continua a organizar-se e a trabalhar. Isto quer dizer que ainda há muita coisa a fazer.

O que falta?
Falta vontade política. Porque nós, magistratura, trabalhamos nos processos. Mas só a verdadeira vontade política pode resolver o problema de raiz.

A população acusa o Estado de ter interesse em manter a máfia. Porquê?

Deve fazer essa pergunta aos políticos. O Estado deve combater a máfia de forma séria. Em parte fá-lo e em parte não. Algumas vezes propõe projectos de lei que não vão mudar nada. Mas a magistratura tem-se empenhado para dar força à legislação.

Trabalhar no desmantelamento de redes mafiosas é muito perigoso. Já recebeu ameaças?
Sim, já houve muitos problemas com colegas meus. Mortes e ameaças. É preciso estar muito atento. Há 20 anos tive uma má experiência quando trabalhava na Sicília. Mas foi numa altura em que a máfia tinha grandes confrontos com o Estado. Agora a estratégia deles mudou. O objectivo é reinvestir capital.

Como opera a máfia italiana?
Agora, o objectivo principal é produzir riqueza. Com a crise, a máfia italiana - de origem mediterrânica - está a investir no Norte. O Norte do país é rico e é o terreno ideal para reinvestir dinheiro: na aquisição de empresas ilegais e participação em negócios económicos ilegais.
Neste momento de crise, a máfia é a única empresa que ganha dinheiro líquido e tem a possibilidade de o reinvestir no mundo inteiro.

Para isso, comete crimes: tráfico de drogas, extorsão, branqueamento de dinheiro e, posteriormente, reinveste esse dinheiro no comércio ilegal. O grosso do problema é subestimar as regiões. Em Itália, durante muitos anos pensou-se que a máfia era só no Sul, agora a população já tem a consciência de que no Norte também se está "mangiando". A máfia é global e o capital também é investido globalmente. E, portanto, digo aos restantes países europeus para não a subestimarem.

Os empresários do Norte têm ligação à máfia?
Não. Eles (da máfia) aproximam-se, fazem-se de cúmplices e, depois, se não trabalhas, ameaçam-te. Ficam encurralados e não têm opção. A participação mafiosa na aquisição de empresas e investimentos é ainda mais difícil de investigar do que outro tipo de crimes. Mas a magistratura não vai baixar a guarda.

Em 1992, a grande figura da luta antimáfia em Itália, o juiz Giovanni Falcone, perdeu a vida num atentado terrorista. Nessa altura tinha acabado de entrar para a direcção. O que mudou na vossa estratégia?
Principalmente a atitude das pessoas. A sociedade começou a envolver-se mais nas questões ligadas à máfia. Queremos alertar os jovens para o nosso problema histórico e para isso temos de manter vivos Falcone e Borsellino.

E falando agora de Portugal? Já se ouviu falar na passagem de alguns elementos da máfia italiana por Portugal.
Não posso dizer que não. Sei que no branqueamento de dinheiro existem ligações com a Espanha, mas em toda a minha experiência nunca tive conhecimento de nada que envolvesse o nome de Portugal.
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