"A Sagração da Primavera" de Olga Roriz

por Vanda Marques
28.05.2010
"A Sagração da Primavera" da coreógrafa portuguesa chega ao palco

Uma talhada de melão e entrevistas. Este tem sido o almoço de Olga Roriz nos últimos dias. No único tempo livre que tem, entre ensaios com os bailarinos e testes de luz, recebe-nos no seu camarim no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Está sozinha, a talhada de melão ainda tem o papel de celofane à volta, e maquilha-se com blush e sombras Channel. "A seguir tenho uma entrevista para a televisão", explica. A nossa hora acaba quando batem à porta.. Outro jornalista, entenda-se. Mas ainda há tempo para desvendar algumas novidades d'"A Sagração da Primavera" coreografada por Olga Roriz, recordar a criança de 2 anos que era uma pequena diva no alto de uma cadeira e falar da bailarina, de 54 anos, mais de 30 a dançar, que está apaixonada.

Não queria fazer "A Sagração da Primavera". Como se sente agora nas vésperas de estrear?
Depois de fazer, está feito. Deixem-me ir embora... (risos) Mas foi muito bom. Decidi fazê-la quando já não tinha tantos sustos na cabeça. Esta música é genial. Assustavam-me com as contagens, com a dificuldade de a coreografar, mas foi uma musa inspiradora. Fiz a peça em cerca de duas semanas e meia. Os bailarinos até tinham dificuldade em apanhar-me. Pediam-me para ter calma, mas eu tinha de continuar, porque aquilo estava a sair de uma golfada, com uma força só. Não me convinha parar e ensaiar.

Como é a sua "Sagração"?
A nível de história, fui muito fiel ao guião de Stravinsky, mas o sábio passou a ter um papel de protagonismo, como o mentor deste ritual e a eleita não é uma vítima. Ela sente-se uma privilegiada que quer chegar ao objectivo para que foi destinada. Quer morrer, desfalecer ou dançar até não poder mais. É uma luta insana contra o cansaço, entre o riso, o choro, o esgar, que lhe dá imensa carga dramática.

Foi fácil escolher a eleita?
Acho que na audição já tinha escolhido a Marta Lobato Faria e o Jácome Filipe para o sábio. A Marta tinha duas coisas muito interessantes, estava prestes a sair ou prestes a ser a Eleita. Ela é especial.

Quando "A Sagração da Primavera" se estreou pela primeira a 29 de Maio de 1913 chocou o público. Porquê?
As pessoas foram para uma noite de ballet clássico e encontraram uma coisa completamente diferente, uma ruptura com o que tinha sido feito até então. Os cenários, os figurinos, a postura, tudo... Aquela música devia parecer horrível, umas panelas... Ainda hoje em dia, tem umas partes... Há uma que não gosto muito, mas quem sou para estar a dizer mal de uma parte da música de Stravinsky. É um bocadinho dura.

Fica nervosa antes dos espectáculos?
Não. É uma adrenalina, uma excitação. Sou perfeccionista e não gosto de pessoas que não estão a 300% quando se está a uns dias da estreia. Qualquer coisa que corre mal por negligência começo aos gritos. Também pode ser assim, como estou a falar agora (baixa o tom da voz), e arraso uma pessoa. Estar 30 minutos à espera de um técnico quando só temos uma hora para as luzes todas, é injusto.

Como acha que o público vai reagir?
Já tive tantas pessoas a ver os ensaios, críticos, jornalistas, amigos desta área e entenderam a peça. Os mais frios, como o Paulo Reis, com quem fiz "Electra", só me veio dar as correcções, mas depois mandou-me uma mensagem: "Gostei muito". Para ele me dizer isto... Nunca me disse na vida. Talvez uma vez.

Sofre com o que público pode achar?
Claro. Não sou assim tão snob, tão "full of myself".

Quando começou a dançar não ficava tensa?
Não. Dois minutos antes tinha um ataque de adrenalina, o coração batia rápido, depois passava. O palco é onde quero estar.

Sempre foi assim?
Sempre gostei de me expor. No meu quarto, subia para uma cadeira, ligava o rádio e punha a família a ver, todos sentadinhos. O meu pai, chorava, a minha mãe ficava histérica e a minha irmã dizia: "lá está ela a fazer de diva". (risos) Isto com dois ou três anos.
Começou a dançar muito cedo, com uma disciplina rigorosa. Não era difícil na adolescência?
Não. Eu adorava fazer um plié. Estava no São Carlos e em vez de ler os contos de fadas, estava dentro de um. Punha o vestidinho da princesa e ia ver os príncipes. Era lindo.

Mas a sua professora Anna Ivanova era muito rigorosa?
Sim. Se chegássemos atrasados três minutos, não fazíamos aula ou se uma fitinha da sapatilha estava suja, fora da sala. Era uma disciplina a vários níveis. Mas penso que era rigorosa sobretudo pelo exemplo que dava. Estive com ela dos 8 aos 18 anos e a senhora não faltou um único dia.

Mas era duro?
Não me lembro de sofrer. Só queria dançar. A sensação que tenho é que nunca sonhei em ser bailarina, já o era. Houve uma altura, digo isto muitas vezes mas é verdade... Era miúda e disse à minha mãe que as bailarinas é que fazem as suas danças. Ela respondeu que não, isso era um coreógrafo. Nem conseguia dizer a palavra, mas já sabia o que queria ser.

Disse que não tinha o melhor dos corpos para bailarina?
Não tinha pernas altas como uma bailarina clássica deve ter. As coxinhas das portuguesas... Mas na contemporânea isso já não faz sentido. Só devia ter cuidado e não engordar.
[Recebe um SMS. "Deixe-me só ver." Faz um silêncio, ri-se sozinha e diz: "Estou apaixonada, desculpe lá. Ai, o calor. Faz um mês no dia 29. Foi no dia mundial da dança."]

Era uma luta constante?
A comer ovos cozidos, maçãs e iogurtes todo o dia, durante meses. E eu que gosto muito de comer. É um sacrifício, mas é por uma boa causa.

Depois deste espectáculo, quais são os seus projectos?
Tenho de descansar a cabeça, mas vou estar em digressão com "A Sagração" e "Electra". Em Julho tenho um projecto musical com a Aldina Duarte, no Teatro São Luiz e até Novembro tenho de montar o último filme que dirigi "Interiores". Depois gostava de descansar com o meu amor.