A América secreta. Um monstro burocrático saído do 11/9

por Gonçalo Venâncio
20.07.2010

Comunidade americana de serviços secretos cresceu de tal modo que se tornou "ineficiente" e "ingovernável" (foto - Marco Zero)

No Departamento de Defesa (DoD), o ramo do governo federal norte-americano responsável pela segurança nacional e Forças Armadas, há apenas uma mão cheia de oficiais com o privilégio burocrático de cruzar todos os dados recolhidos pelas agências de informação na alçada do departamento liderado por Robert Gates.

Têm um nome de código cinematográfico - "super user" (herdado dos super utilizadores da informática) - e por eles passam dois terços dos programas secretos americanos. A corrente de informação é de tal modo avassaladora que um dos "super utilizadores" confessou: "Não vou viver tempo suficiente para ser brifado sobre tudo isto." Este episódio, um dos muitos relatados na edição de ontem do "The Washington Post", mostra como o crescimento exponencial da comunidade de informações americana no pós-11 de Setembro tornou o sistema vulnerável e ineficiente.

Numa investigação de dois anos intitulada "Top Secret America", o 'Post' fala de uma "geografia alternativa" nos Estados Unidos, onde uma rede de agências e departamentos governamentais, e as suas burocracias próprias, operam nas margens do escrutínio público. "O mundo 'top-secret', criado pelo governo na resposta aos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, tornou-se tão grande, tão pesado e tão secreto que ninguém sabe quanto dinheiro custa, quantas pessoas emprega, quantos programas existem ou, mais exactamente, quantas agências fazem o mesmo trabalho", lê-se no diário americano.

A comunidade de informações tem tantas ramificações e, alimentada por milhões e milhões de dólares durante nove anos, reproduz-se a um ritmo tão acelerado que o próprio Robert Gates admite as dificuldades em manter o controlo sobre o sistema: "Houve um tal crescimento desde o 11/9 que pôr os braços à volta do sistema é um desafio."

Miguel Monjardino, especialista em segurança internacional, acredita que as conclusões da investigação do 'Post' devem ser colocadas em contexto. "A seguir ao 11/9, os decisores políticos americanos decidiram pecar por excesso na protecção dos cidadãos. A América tem uma maneira de fazer as coisas - que faz alguma confusão aos europeus - e isso é fazer tudo em grande. À comunidade de informações nunca faltaram recursos, nem infra-estruturas, nem homens" diz.

A expansão desta verdadeira indústria de informações secretas - com contratos multibilionários atribuídos a agências governamentais e privados - tem tradução numérica. Por exemplo, hoje, o orçamento das secretas é de 57,8 mil milhões de euros - o equivalente a dez novos aeroportos em Alcochete. Este valor é 21 vezes superior ao de 2001, antes dos ataques terroristas às Torres Gémeas.

Mais, pelo menos 20% das agências que actualmente conduzem operações de contraterrorismo, recolha de informações, espionagem e contra-espionagem foram criadas ou reformuladas depois do 11 de Setembro. Nas contas do 'Post', há 1271 agências governamentais e 1931 companhias privadas, espalhadas por dez mil localidades nos Estados Unidos, a conduzir programas relacionados com a segurança nacional.

Muitos deles redundantes, apanhados por uma malha organizacional de grande complexidade. A sobreposição de agências no sistema e o fluxo de informação completamente ingovernável - por exemplo, são produzidos 50 mil relatórios anuais com informação sensível - fazem com que os políticos parem para pensar. "Nove anos depois, faz sentido olhar e perceber: 'Okay, temos uma tremenda capacidade, mas será que temos mais do que precisamos?'" questiona-se Gates.

E é claro que atrás de novas organizações vêm novas burocracias. Todos os dias, em toda a América, 854 mil pessoas - funcionários públicos, pessoal militar e privados contratados pelo governo - com níveis de acesso 'top secret' são scanadas antes de entrarem em gabinetes com fechaduras electromagnéticas, câmaras de controlo de retina e paredes fortificadas. Este número é uma vez e meia a população de Washington.

"Temos de olhar para aquilo que existe como sendo os primeiros passos de uma máquina burocrática que vai ter de lidar com um fenómeno transversal a uma geração, o terrorismo transnacional. Este foi o preço pago pelo ajustamento feito depois do 11/9. Agora, veremos um novo ajustamento num contexto de crise," prevê o professor da Universidade Católica.

Mas não é só a ineficiência e a redundância do sistema que empurra os políticos no sentido da reforma, como explica Monjardino: "Não é apenas o sistema que é extraordinariamente caro numa altura de crise. Há muitas dúvidas relativamente ao que é produzido para avaliação dos decisores políticos e o mais difícil de gerir numa sociedade democrática é a sensação de ausência de controlo que se tem sobre estas agências."

Mesmo com os seus defeitos e virtudes, o sistema cumpriu no essencial: "A América não voltou a sofrer ataques no seu território", conclui Monjardino.
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