Fernando Namora visto de perto

Fernando Namora pertenceu a uma época em que a cultura dispunha de poder, e a um grupo de intelectuais que tinha como objectivo realizar uma teoria de conjunto da injustiça social.


por Baptista Bastos
26.07.2010

"Se não esqueceres os teus amigos, eles viverão enquanto tu viveres. Não há mortes individuais. Nem vidas." Elias Canetti - "Massa e Poder"

Vou ali à estante. Lá está ele, junto com os seus camaradas de geração. A densa capa do esquecimento tombou sobre ele; mas os seus camaradas, quase todos, não tiveram melhor sorte.
Fernando Namora pertenceu a uma época em que a cultura dispunha de poder, e a um grupo de intelectuais que tinha como objectivo realizar uma teoria de conjunto da injustiça social.

Hoje, talvez se olhe para aquele tempo e se examine aquele projecto com pequenos sorrisos desdenhosos. A ignorância sempre foi pedante e atrevida. E a grandeza daqueles jovens de então media-se pela dimensão do que ambicionavam e pela urgência do que diziam.

Seria, acaso, importante proceder-se à leitura de um antigo texto de Namora, contido numa reedição do belíssimo "Casa da Malta", e talvez se entendesse que a relação, a relação com o outro, é o traço principal identificador da cultura. A cultura como meio de transformação; a cultura como processo de mais uma criação do "outro."

Nesse grupo de escritores, que a definição de "neorealistas" tornou redutora, creio que somente o Fernando Namora não era marxista. Todos os outros o eram, habitualmente sem terem lido Marx, a não ser através dos seus intérpretes: Friedman, Goldman, Lukacs, Lefebvre, Costas Axelos, textos esparsos de Lenine, Staline; alguns artigos de Elio Vittorini, traduzidos, à socapa, da grande revista "Il Politecnico", na qual o romancista de "Os Homens e os Outros" polemizou com Palmiro Togliatti.

De resto, a formação dessa gente fez-se com a argumentação da leitura. A lista de autores americanos, russos, italianos, franceses por eles consumida é impressionante, pelo tamanho e pela diversidade.

Curioso é o facto de o "neorealismo" ter surgido em locais tão separados pela distância como em Coimbra, no Porto, em Santiago de Cacém, Vila Franca de Xira - e nas tertúlias dos cafés de Lisboa.

É o que se convencionou designar de "o ar do tempo", e de uma vontade reconstrutora do mundo e da sociedade. O propósito cabia neste princípio: a cultura da exclusão leva, inevitavelmente, à exclusão da cultura. Portanto, a cultura como mediadora que se não subordinava à razão dominante.

Namora é um dos mais importantes partícipes desse projecto sem programa. Ergue um edifício literário no qual a estética se associa a uma ética muito pessoal: nele, na sua obra, o acto cultural é um compromisso que se não esvazia de um forte conteúdo moral.

Instalando-se em Lisboa, nunca se adaptou às malícias e às artimanhas da cidade. Como Aquilino, sobre o qual escreveu um texto a vários títulos admirável, Fernando Namora nunca deixou de ser um homem do campo com a nostalgia dos grandes silêncios e dos imensos espaços.

Tenho várias fotografias com ele. A mais antiga, eu para aí com vinte anos, no gabinete onde ele trabalhava no Instituto de Oncologia. Fui entrevistá-lo para a revista "Eva", dirigida por uma senhora excepcional, Carolina Homem Christo, e em cuja Redacção escreviam Carlos de Oliveira, Maria Judite de Carvalho, José Cardoso Pires e Rogério de Freitas. A entrevista levava o título de "Retalhos da Vida de um Escritor."

Na imagem, lá estão o seu rosto fechado, o seu sorriso magoado, o seu ar melancólico e, também, o registo da sua bondade, da sua compaixão e da sua generosidade. Não foi um homem feliz. E, no entanto, ele, Ferreira de Castro e Urbano Tavares Rodrigues eram, então, os escritores portugueses mais conhecidos, mais traduzidos, mais admirados e, até, adulados.

A notícia da próxima saída de um livro de Namora causava grande alvoroço. Ocasiões houve em que, antes de sair a público, a primeira edição de alguns dos seus livros (cinco mil, sete mil e quinhentos exemplares) já estavam esgotadas. E há títulos de Namora que constituem importantes documentos literários da vida portuguesa.

O seu impressionante êxito: edições de milhares e milhares de exemplares, traduções constantes, ensaios, estudos exegeses, teses sobre a sua obra, amiudadas vezes requisitado pela Imprensa a fim de depor acerca de este e de aquele assunto; entrevistas, comentários - enfim, essa glória que o envolveu não deixou de causar invejas e ressentimentos.

A vida literária portuguesa não é diferente da vida literária em outros países [leia-se, a título de exemplo, "Écrits Intimes", de Roger Vailland, outro grande esquecido]. E Namora, cuja generosidade e camaradagem eram lendárias, sentia, profundamente, a circunstância. No entanto, jamais deixou de ser amável e cortês, até efusivo, com muitos daqueles que o atropelavam nas tertúlias dos cafés.

Pessoalmente, devo-lhe favores, gentilezas e atenções. Foi ele quem se prestou, sem lho pedir, a falar com o seu editor de então, o Lyon de Castro, da Europa-América, sobre um livro meu "As Palavras dos Outros", cuja primeira edição foi lançada pela constância da sua bela camaradagem.

Ele sabia muito bem das aleivosias, dos destratos de que era objecto. Nem uma vez, nem uma escassa e módica vez, se me queixou. Encontrávamo-nos nos cafés. Tentava animá-lo. Visitava-o em sua casa, na Infante Santo. Já muito doente, fez questão em assistir ao lançamento de um livro meu, "A Colina de Cristal", sobre o qual ainda me enviou uma carta fraterna e generosa.

Agora, tomo de mão o que, num depoimento ao "Diário de Lisboa", sobre a morte dele, disse Agustina Bessa-Luís, como só ela o sabia dizer: "Falta-nos o rio triste do seu olhar."

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