México - A palavra de Deus em dialecto de gangster
10.07.2010


Todos os meses, adoradores de São Judas, o padroeiro dos traficantes, rumam à igreja. A homilia é em calão. Deus não se ofende


Frederick Loos praguejava como um marinheiro. Não deixava de ser surpreendente. Afinal, é um padre católico e naquela noite, na Cidade do México, o seu discurso obsceno estava a ser proferido no púlpito para as centenas de fiéis reunidos perante ele.

Falou de Deus, da necessidade de O servir e como Ele pode transformar vidas. Porém, espalhado pelo seu sermão estava o mais colorido do castelhano que se fala nas ruas, o que fez sorrir os muitos membros de gangue, toxicodependentes e outros jovens que se comprimiam para o ouvir.


"Quando vamos à China, temos de falar chinês", explica depois o padre, enquanto despe os paramentos. "Quando falamos com miúdos temos de usar a sua linguagem. Não acho que Deus fique ofendido se isso os aproximar Dele."

Aqueles que estão presos à próspera cultura da droga do México - tanto consumidores como traficantes - possuem uma relação invulgar com a Igreja. Cheirar cola e fazer o sinal da cruz pode não parece mais compatível do que matar e o catecismo. Mas para muitos fiéis do México moderno são perfeitamente compatíveis.

O enorme rebanho que desce até à Igreja de Santo Hipólito no dia 28 de cada mês é composto, no mínimo, de praticantes pouco convencionais. Tatuados e com piercings, os jovens vêm de alguns dos mais duros bairros da capital. Muitos reconhecem fazer parte de gangues e consumir drogas. Aliás, a droga é abundante mesmo à porta da igreja, onde o fumo de marijuana enche o ar e snifar cola é uma actividade corrente.

São Judas
Contudo, um santo do século I que muitos jovens mexicanos adoptaram como seu está também a ter o efeito de alterar as mentes. Milhares de jovens dos bairros mais duros e marginais da capital do México começaram recentemente a fazer peregrinações mensais a Santo Hipólito, levando velas, rosários e efígies de São Judas, o patrono das causas perdidas.

"Quero ligar-me a Deus", diz um adolescente de olhar vítreo que segura uma estátua de São Judas ao mesmo tempo que snifa cola quando lhe perguntamos acerca do seu fervor religioso. "Iaaaá", diz o amigo dele, balançando-se de forma precária, também ele sob os efeitos da cola.

Os jovens chegam de metro, autocarro e moto, oriundos dos cantos mais duros da cidade, desejosos por uma bênção. A Igreja, com algum desconforto, está a tentar canalizar este fervor pouco ortodoxo. O reverendo René Pérez, o amigável padre da paróquia encarregado de manter sob controlo o novo e barulhento rebanho, espera reinventar São Judas como santo padroeiro não oficial dos toxicodependentes. "Não temos uma varinha mágica, mas queremos aproveitar a fé que eles têm", afirma Pérez.

Em resultado disso, aceita que se ponham drogas na caixa da esmola se os seguidores prometerem deixar o vício ali mesmo. Com ele veio também Loos, 74 anos, um americano que vive no México há mais de quatro décadas e cujo calão de bairro ajuda a estabelecer ligação com os recém-chegados.

"É um fenómeno tremendo, e ninguém o compreende", diz Loos, ressalvando que as drogas ficam à porta da igreja. "Ele necessitam claramente de ajuda para os seus problemas. Andam com as estátuas de São Judas, algumas maiores que eles próprios. São Judas tornou-se muito próximo deles."

Com a esperança de evitar que o fascínio por São Judas se transforme em interesse por Jesús Malverde, um fora-da-lei dos século XX que foi adoptado como santo por quem está no negócio da droga, a igreja quer direccionar a fé dos jovens para a igreja convencional. Alguns fiéis tradicionais, no entanto, não gostam particularmente da linguagem obscena e um grupo deles chegou a confrontar Pérez, em protesto pelas palavras de Loos.

El más loco
Os jovens fiéis da Cidade do México não são, de modo algum, os únicos a misturar religião com vício. Poderosos barões da droga de outras partes do país são conhecidos por oferecer doações consideráveis para obras nas igrejas e outros projectos. Classificando os traficantes como "muito generosos", o bispo Carlos Aguiar Retes, presidente da Conferência Episcopal Mexicana, levantou alguma celeuma no ano passado quando foi citado pelo jornal "Reforma" a dar crédito aos traficantes pela construção de igrejas, capelas e outras infra-estruturas.

Em Michoacan, um estado no centro do México conhecido pelo cultivo de marijuana e pela produção de metanfetaminas, uma versão deturpada da Bíblia foi adoptada por um gangue de droga conhecido como "La Familia".

"Rogo a Deus por força e por desafios que me tornem forte", lê-se na escritura familiar. "Rogo-Lhe por sabedoria e por me dar problemas para resolver. Rogo-Lhe por prosperidade e por me dar a inteligência e os músculos para trabalhar." A assinatura é de Nazario Moreno, o líder espiritual da La Familia, que dá pela alcunha de El Mas Loco, O Mais Louco.

Embora esta paróquia da Cidade do México esteja a tentar persuadir os jovens problemáticos a deixar os seus vícios, El Mas Loco criou um culto no campo que utiliza a religião para justificar o caminho criminoso do seu grupo, signifique isso matar agentes da polícia que tentam interromper o negócio da droga ou eliminar rivais cortando-lhes a cabeça. Este bem e mal pode ser tão perigoso que deixa os sacerdotes a tremer.

"A maioria destes indivíduos que se estão a matar uns aos outros são católicos baptizados", diz Loos. "Como podem eles fazer o que fazem? A violência é tão sádica. Como podem eles regressar a casa à noite e abraçar os seus filhos? Não consigo perceber."
http://www.ionline.pt/
The New York Times