Carmen Herrera

A grande revelação da pintura tem 94 anos
07.01 2010

Pinta há 60 anos e vendeu o primeiro quadro em 2004. Agora é a "descoberta da década" e cobra 30 mil euros por obra

Sentada na cadeira de rodas, debaixo de uma clarabóia do seu loft (sotão) perto de Union Square, em Manhattan, a pintora abstracta Carmen Herrera, de 94 anos, segura uma taça de champanhe. Após 60 anos de pintura muito privada, Herrera vendeu a primeira obra de arte em 2004, com 89 anos. Hoje, numa pequena cerimónia em sua honra, rejubila ao perceber que a sua carreira está por fim, e indiscutivelmente, lançada. Sob as luzes dos flashes, estende as mãos para receber um prémio de carreira entregue pelo director do Centro de Arte Walker, em Minneapolis.

O amigo e pintor Tony Bechara ergue o copo. "Em Porto Rico temos um ditado", declara. "O autocarro [guagua] chega sempre para quem fica à espera."

Herrera, nascida em Cuba, ri-se e responde: "Bem, Tony, estive à espera na paragem durante 94 anos!"

Desde a primeira venda, há cinco anos, os coleccionadores têm perseguido avidamente Herrera. As suas pinturas radiantemente ascéticas passaram a fazer parte de colecções permanentes de instituições como o Museu de Arte Moderna (MoMA), o Museu Hirshhorn e a Galeria Tate Modern. No ano passado, o MoMA incluiu-a numa exposição de artistas latino-americanos. Este Verão, durante uma mostra retrospectiva em Inglaterra, o jornal inglês "The Observer" considerou Herrera a descoberta da década, perguntando: "Como pudemos passar ao lado destas belíssimas composições?"

Numa época em que o mundo artístico idolatra, e muitas vezes recompensa generosamente, jovens e principiantes, Herrera, uma pintora nonagenária com artrite e confinada à sua casa, encarna um tipo de sucesso diferente e raro: o da artista ignorada pelo mercado e pela história que persistiu por não ter alternativa.

"Faço-o porque tenho de o fazer; é uma compulsão que também me dá prazer", diz. "Nunca na vida pensei em dinheiro e achava que a fama era algo muito vulgar. Por isso, trabalhei e esperei. E no fim da vida, para meu espanto e alegria, estou a ter imenso reconhecimento."

Obra
Julian Zugazagoitia, director de El Museo del Barrio, em East Harlem, chamou a Herrera "uma sossegada guerreira da sua arte". "Atingir a glória aos 94 anos - independentemente do que a ascensão lenta de Carmen Herrera possa transmitir sobre as dificuldades de ser uma artista mulher, uma artista imigrante ou uma artista à frente do seu tempo - é claramente uma história de força pessoal", afirma Zugazagoitia.

Uma minimalista cujas telas são destilações geométricas de forma e cor, Herrera tem atraído a atenção dos historiadores de arte ao longo da última década. Agora, cada vez mais é considerada uma figura importante por aqueles que estudam as suas "pinturas icónicas, notavelmente monumentais", diz Edward J. Sullivan, professor de História de Arte da Universidade de Nova Iorque.

Herrera, que desde o final da década de 30 pinta em relativa solidão, tendo exposto apenas ocasionalmente, contou com o apoio inabalável do marido Jesse Loewenthal, de 61 anos. Loewenthal, professor de inglês do Liceu Stuyvesant em Manhattan, foi retratado pelo seu colega memorista Frank McCourt como um intelectual do Velho Mundo num "elegante terno de três peças, com a corrente de ouro do relógio atravessada diante do seu colete".

O reconhecimento de Herrera aconteceu alguns anos depois da morte do marido, com 98 anos, em 2000. "Toda a gente diz que Jesse deve ter orquestrado isto lá de cima", diz Herrera, sacudindo a cabeça. "Sim, claro, Jesse numa nuvem." E acrescenta: "Trabalhei arduamente. Se calhar fui eu."

Nas entrevistas no seu apartamento mobilado de forma parca mas artística, Herrera ofereceu sempre um cocktail - "Oh, por favor não sejam moderados!" - e uma série de histórias sobre a Cuba pré-revolucionária, Paris do pós-guerra e os muitos artistas que conheceu, desde Wifredo Lam a Yves Klein ou Barnett Newman.

"Ah, Wifredo!", exclama, referindo-se a Lam, o pintor francês de origem cubana. "As raparigas eram loucas por ele. Quando estávamos em Havana, telefonavam-me constantemente: 'O Wifredo está por cá?' Santa paciência, não era a secretária dele."

Mas Herrera é menos expansiva quando fala da sua arte e discute-a com um minimalismo que evoca a sua obra. "As pinturas falam por elas", diz.

À pergunta "como descreveria a um aluno uma pintura como 'Blanco y Verde?'" (66) - uma tela branca interrompida por um triângulo invertido verde -, responde: "Eu nunca teria um aluno." Então, a uma criança dócil e curiosa? "Dava-lhe um doce para ela ficar com os dente podres."

Vida
Nascida em 1915, em Havana, onde o seu pai foi o editor fundador do diário "El Mundo" e a sua mãe repórter, Herrera teve aulas de arte em criança, frequentou uma escola feminina direccionada para as artes e actividades sociais em Paris e iniciou o curso de Arquitectura numa universidade cubana. Em 39, a meio dos estudos, casou-se com Loewenthal e mudou-se para Nova Iorque (não tiveram filhos).

Embora tenha estudado na Art Students League de Nova Iorque, Herrera só descobriu a sua identidade artística quando se estabeleceu com o marido alguns anos em Paris, após a Segunda Guerra Mundial. Aí, juntou-se a um grupo de artistas abstractos com base no influente Salon des Réalités Nouvelles, onde expôs o seu trabalho ao lado de Josef Albers, Jean Arp, Sonia Delaunay e outros.

"Andava à procura de um vocabulário pictórico e foi lá que o encontrei", conta. "Mas quando regressámos a Nova Iorque, este tipo de arte não era aceite. O que estava na moda era o expressionismo abstracto. Não conseguia arranjar uma galeria."

Herrera conta que também se resignou aos obstáculos encontrados enquanto artista feminina hispânica, "como se se tratasse de um handicap". Além disso, "naquela altura, a sua arte não era facilmente digerível", afirma Zugazagoitia. "Não pintava paisagens cubanas nem flores tropicais, a arte que talvez se esperasse de uma emigrante cubana que tinha vivido em Paris. Ela estava à frente do seu tempo."

Durante décadas, Herrera fez algumas mostras individuais aqui e ali, incluindo em museus (Museu Alternativo em 84, El Museo del Barrio em 98). Mas nunca vendeu nada e nunca precisou (nem desejou fortemente) da afirmação do mercado. "Teria sido agradável, mas talvez prejudicial", afirma.

Bechara, que se tornou seu amigo no início dos anos 70 e agora é presidente do El Museo del Barrio, tentou trazê-la a público várias vezes, ainda que ela "encontrasse uma espécie de alívio em estar só".

Um dia, em 2004, Bechara jantou com Frederico Seve, proprietário da galeria Latin Collector em Manhattan, que procurava solução para a desistência de uma artista de uma mostra de pintoras geométricas muito publicitada. Seve recorda que Tony lhe disse: "Geometria e mulheres? Precisas de Cármen Herrera." "E eu perguntei: 'Mas quem é Carmen Herrera?'"

Na manhã seguinte, Seve chegou à galeria e encontrou várias pinturas acabadas de entregar, que pensou serem da conhecida artista brasileira Lygia Clark, mas que na verdade eram de Carmen Herrera. Virando as telas, percebeu que eram dez anos anteriores às pinturas de Clark, de estilo semelhante. "Uau!", lembra-se de exclamar. "Temos aqui uma pioneira."

Seve ligou rapidamente a Ella Fontanals-Cisneros, uma coleccionista que tem uma fundação de arte em Miami. Ella comprou cinco pinturas de Herrera. Estrellita Brodsky, outra coleccionista de relevo, comprou outras cinco. Agnes Gund, presidente emérita do Museu de Arte Moderna, comprou várias obras e, juntamente com Bechara, doou uma das pinturas de Herrera a preto e branco ao MoMA.

A recente exposição em Inglaterra, que agora vai para a Alemanha, surgiu por acaso quando um curador se deparou com as pinturas de Herrera na internet. Em Dezembro, o "The Observer" considerou a referida exposição uma das dez melhores do ano, juntamente com uma mostra de Picasso e outra consagrada ao artista pop americano Ed Ruscha.

O êxito tardio de Herrera surpreendeu-a por muitas razões. As suas obras de maiores dimensões vendem-se agora por 30 mil dólares (20,9 mil euros) e uma pintura encomendada por 44 mil dólares (30,6 mil euros) - somas inimagináveis quando a pintora tinha, por exemplo, 80 anos. "Tenho mais dinheiro agora do que alguma vez tive na minha vida", diz.

Mas não sucumbe a uma vida de ócio. Herrera, sentada a uma mesa comprida de onde observa a East 19th Street "como uma porteira francesa", continua a desenhar e a pintar porque tem de o fazer. "É o meu amor pelas linhas rectas que me mantém viva," afirma.
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