LIVRO

O amor, o sexo e o casamento no tempo de Salazar

Isabel Freire ouviu as histórias secretas de 12 homens e mulheres que hoje têm entre 70 e 90 anos. Os relatos saem esta semana em livro

por Rosa Ramos
23.11. 2010

Em 1959, a revista "Crónica Feminina" anuncia às "queridas leitoras" a primeira fotonovela portuguesa. Fernando, o protagonista, é um rapaz solteiro, atraente e rico, mas inconstante no amor. Por isso é obrigado pelo pai a casar no espaço de um mês - caso contrário, será deserdado. Para encontrar "uma mulher apropriada" e "casta", Fernando põe um anúncio no jornal - prática comum na época. Nas edições seguintes, as leitoras assistem ao desfilar das várias candidatas, que vão sendo chumbadas pelo jovem rico.
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Uma "boémia" que gosta de rock and roll. Uma corista de 28 anos com um gosto particular por aventuras. Uma costureira pobre que anseia por um marido rico. Fernando acaba por escolher a secretária do pai, uma rapariga exemplar aos olhos da época: 21 anos, beleza "sóbria", "sem pinturas", com "personalidade e cultura".

Pode não passar de uma fotonovela, mas aqui a ficção serve de exemplo do que era a moral e o mundo dos afectos e da sexualidade do Portugal da década 50, que a jornalista e escritora Isabel Freire retratou em livro. "Amor e Sexo no Tempo de Salazar"(ed. Esfera dos Livros), lançado esta semana, é uma viagem ao tempo em que o beijo era o mais perigoso dos delitos e as infidelidades corriam o risco de ser expostas nos sermões das missas. A novela da vida real é conduzida pelos relatos secretos de 12 homens e mulheres que hoje têm entre 70 e 90 anos, apimentados com documentos, revistas e jornais da época.
A mulher
Nos "dourados" anos 50 - a década em que se estreia a televisão portuguesa, em que o rock and roll ganha expressão e em que estrelas como Marilyn Monroe ou James Dean chegam a Hollywood - cabia ao homem governar a família e à mulher ser simultaneamente esposa, mãe e fada do lar. É a mesma época em que nenhum homem de boa moral ousaria casar com uma "galdéria" ou fazer com a esposa o que fazia fora de casa com outra mulher.
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Mais de 80% das mulheres casadas, recorda Isabel Freire, não tinham orgasmos. "A mulher casada estava disponível para o prazer do marido, ficava na posição de missionário, provavelmente ao sábado à noite, porque domingo era dia de banho e de missa", explica, no livro, a professora universitária Cecília Barreira. As boas meninas ficavam em casa a cozinhar, a limpar, a bordar, a dar ordens às criadas, a tratar das crianças ou a tomar conta dos idosos.
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Eram guardadas intactas, "fechadas em capelinhas" até ao dia do casamento, como recorda António, hoje com 83 anos. "No dia do matrimónio, as noivas parecia que... iam magoadas! Não sei explicar... era assim! Agora não. Vai tudo contente! Vai tudo a rir-se! Mas no meu tempo a noiva era uma coisa séria", acrescenta Esperança, 90 anos. Em todos os momentos, dentro e fora de casa, a rapariga devia esforçar-se por manter uma imagem intocável. "Lavar--se da cabeça aos pés, evitar chegar atrasada", recorda Isabel Freire. O boletim de instrução para os dirigentes da Mocidade Portuguesa desaconselhava igualmente as "modas espalhafatosas" e os "penteados complicados".

O sexo
Mas se o puritanismo e a vigilância dos costumes eram evidentes, havia excepções. "As mulheres não se masturbavam? Ai masturbavam, masturbavam! Condenava a Igreja, mas não condenava eu", admite Sofia, hoje com 70 anos. Em segredo, os rapazes juntavam-se em masturbações colectivas na escola. "Acontecia nas casas de banho ou numa mata que havia frente à escola e para onde nos escapulíamos no intervalo", recorda Manuel, 72 anos. Os homens, revela Isabel Freire, abriam buracos circulares na terra para se masturbarem, convencidos de que isso aumentaria o volume do pénis.
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As mulheres - que não deveriam admitir que gostavam de sentir prazer, sob pena de serem consideradas perversas - desdobravam- -se muitas vezes em abortos ou experimentavam alternativas aos contraceptivos - todos proibidos pelo Vaticano, à excepção da abstinência sexual no período da ovulação da mulher. "Umas velazinhas de manteiga de cacau que se enfiavam na vagina [...] quando vinha o esperma, enrolava-se naquilo [...] Também usávamos o preservativo, mas rebentava porque a gente não sabia usar aquilo", conta Mariazinha, 84 anos.
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Nessa mesma época, as criadas engravidavam dos patrões e eram despachadas, às escondidas, para a aldeia. "Trabalhava uma criada muito jeitosinha. Nunca lhe liguei nenhuma, mas um dia, ao fim-de-semana, enfiou-se na cama comigo e mantivemos uma relação erótica um certo tempo", confessa Manuel.

A revolução
Em 1961, os sectores mais conservadores são abalados com a publicação da "Carta a uma jovem portuguesa", assinada por um estudante anónimo. "Nos anos 60 começa a existir alguma abertura, as mulheres sentem que há coisas que podem não ser como lhes foi contado", explica Isabel Freire. António, um dos entrevistados, lembra-se de Simone de Oliveira vencer o Festival da Canção, em 69, com a "Desfolhada Portuguesa". "Quem faz um filho fá-lo com gosto? Isso era uma coisa incrível de se dizer. Afirmá-lo era revolucionário [...] Com as mulheres, a revolução aconteceu de outro modo: começaram a dar liberdade às próprias filhas. Começaram a sentir que tinham direitos", resume.

Dona de casa atenta ao marido
ou perversa e "moderna"
eram os "dois tipos de mulher" nos anos 50