LITERATURA

J.D. Salinger

Tão difícil de encontrar como uma agulha no palheiro. Mas bom vizinho
27.10.2010

Afinal, o escritor não era um recluso. Antes pelo contrário, participava na vida da comunidade e os vizinhos gostavam tanto dele que se instituiu um código para o proteger. Uma viagem à cidade onde vivia Salinger
.
Holden Caulfield, a sua personagem mais célebre, dizia que era impossível encontrar um local "simpático e calmo", mas J.D. Salinger pode ter encontrado algo parecido para si próprio nos bosques desta pequena cidade.
.
Lá, Salinger era apenas tratado pelo nome próprio, vivia como um homem tranquilo que chegava cedo aos jantares da congregação, saudava as pessoas quando comprava o jornal e escrevia notas de agradecimento aos bombeiros que lhe tinham conseguido apagar um incêndio e salvo a papelada.
.
Apesar da reputação que tinha, Salinger "não era um recluso", diz Nancy Norwalk, bibliotecária da Philip Read Memorial Library, de Plainfield, que o escritor frequentava. "Era uma pessoa citadina."
.
E, epois de se saber da sua morte, os vizinhos não quiseram falar sobre ele, cumprindo aquilo a que alguém chamou "o código das colinas".
.
"As pessoas não combinaram entre si preservar-lhe a privacidade, mas todos o fizeram - de outro modo ele não teria ficado cá todos estes anos", diz Sherry Boudro, da vizinha Windsor (Vermont), que diz que o pai, Paul Sayah, se tornou amigo de Salinger nos anos 70. "As pessoas daqui viam-no como uma pessoa, e não apenas como o autor de 'À Espera no Centeio'. Respeitavam-no. Era uma pessoa que só queria viver a sua vida."
.
Os curiosos desembarcavam constantemente em Cornish e arredores, pedindo aos residentes que lhes indicassem onde era a casa de Salinger. Em vez de darem com a casa, os intrusos acabavam numa busca em vão.
.
O grau de pormenor das indicações "dependia do grau de arrogância de cada um", diz Mike Ackerman, dono da mercearia de Cornish. Salinger, diz, "era como o Batman. Todos sabiam que o Batman existia e todos sabem que há uma Batcave [caverna do Batman], mas ninguém lhe vai dizer onde é."
.
Cornish, uma localidade com cerca de 1 700 habitantes, situada nas margens do rio Connecticut, tem duas mercearias, um posto de correio, uma igreja e vários quilómetros de pinheiros, carvalhos, terra arável e colinas suaves. Há muito que é um reduto de férias para artistas e escritores, um refúgio solitário no meio da floresta.
.
Salinger adorava esta região sob todos os pontos de vista. Até há poucos anos, votava nas eleições e participava nas assembleias municipais na escola primária de Cornish e ia todos os dias aos Armazéns Plainfield, antes do fecho. Era visto frequentemente a almoçar sozinho no Windsor Diner do supermercado Price Chopper, de Windsor, que está separado de Cornish por uma ponte coberta e pelo rio, agora coberto de gelo. Também se dizia que Salinger tinha frequentado a biblioteca do Dartmouth College e que esteve presente em algumas festas particulares.
.
Segundo os residentes, nos anos 1950, Salinger dava-se com estudantes do liceu de Windsor, encontrando-se com eles no Nap's Lunch.
.
Salinger e a mulher, Colleen O'Neill, eram "muito generosos" para a localidade de Cornish, diz Keith L. Jones, edil e também proprietário da Cornish Automotive. Colleen, que se casou com Salinger no fim da década de 80, é uma exímia criadora de "quilts" (mantas de retalhos) e é participante activa nos assuntos municipais. Também é adepta da preservação da Natureza e comprou terrenos ameaçados pela urbanização. Este Verão, recuperou um velho celeiro na propriedade do casal de onde, segundo dizem, se avista o monte Ascutney e a paisagem do Vermont.
.
"Ela costumava dizer, 'o Jerry quer que eu deite o celeiro abaixo, mas eu quero recuperá-lo'" diz Stephen Taylor, um residente local.
.
Durante estes últimos anos, Salinger saía menos de casa, mas "adorava os jantares da igreja", diz Jones.
Salinger ia habitualmente aos jantares de carne grelhada a 12 dólares da First Congregational Church, em Hartland (Vermont). Chegava com hora e meia de antecedência e passava esse tempo a escrever num pequeno bloco-notas de espiral, diz Jeannie Frazer, membro da congregação. Costumava andar com calças de veludo canelado e camisola, diz ela, e não falava com ninguém. Sentava-se na cabeceira da mesa, perto das tartes.
.
Jantou lá pela última vez em Dezembro e Colleen foi lá buscar o jantar nos últimos dois sábados. Salinger era uma das poucas pessoas que davam uns dólares de gorjeta às crianças que serviam os jantares. Nem todos davam gorjeta", diz Stuart Farnham, cujo filho recebeu 2 dólares de Salinger.
.
Merilynn Bourne, presidente da Assembleia Municipal, comprou a casa à ex-mulher de Salinger nos finais dos anos 70. Havia um túnel que ligava a garagem à casa, por uma questão de privacidade. Bourne diz que estava a reparar a rotura de um cano na cozinha, pouco depois de ter comprado a casa, quando ouviu uma voz potente perguntar, "Quem está aí?", vinda de outra divisão. Era Salinger, espantado que houvesse gente. Ela explicou-se e ele saiu. Nunca mais voltaram a falar um com o outro.
.
Poucos anos mais tarde, Bourne mudou-se para uma casa mais perto da de Salinger. O escritor costumava passar, no seu Toyota Land Cruiser bege e parava para dois dedos de conversa com os filhos de Merilynn, que brincavam no pátio em frente da casa; fazia-lhes perguntas sobre a escola e sobre os brinquedos. No Inverno, as crianças batiam à porta da casa de Salinger, pedindo-lhe autorização para descerem a sua colina de trenó e ele aceitava sempre.
.
“Apos ter sido perseguido durante anos, percebi o porquê de os adultos lhe serem suspeitos e as crianças não", diz Merilynn Bourne.
Peter Burling, residente de Cornish e antigo senador, cresceu perto da casa de Salinger e lembra-se dele como sendo um vizinho amigável, de trato fácil.
.
Há poucos anos, Burling construiu para o seu filho pequeno, no sopé da colina, uma paragem de autocarro pintada de vermelho. Os websites indicavam a quem procurava a casa de Salinger que virasse nessa paragem. Mais tarde, Burling vendeu essa paragem a um habitante menos merecedor de consideração, Christian Karl Gerhartsreiter, um alemão que se fazia passar por um Rockefeller e que mais tarde veio a ser condenado como raptor dos filhos. Em vez da casa de Salinger, os curiosos acabavam por ir parar à de Gerhartsreiter, diz Burling.
E acrescenta, "as pessoas entravam-lhe pela propriedade adentro e pediam para falar com J.D. Salinger".
.
Salinger não via com bons olhos a simbologia de uma vida ao estilo da Nova Inglaterra. Há várias gerações que todos os anos as cidades nomeavam "hog reeves" - pessoas que apanhavam gado tresmalhado - durante as assembleias municipais. Em Cornish, por brincadeira, os recém-casados são nomeados "hog reeves" honorários. Nos finais dos anos 50, Salinger e a mulher, Claire, não escaparam, diz Taylor. "Ao que consta, ele não achava graça à brincadeira", acrescenta.
www.ionline.pt/