LIVRO

Jacques Le Goff. São Francisco de Assis

por Júlio Pimentel Pinto

 

São Francisco de Assis pode, à primeira vista, decepcionar — o livro, não o santo. Sobretudo a quem espera uma biografia.
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Porque a obra de Jacques Le Goff é, na verdade, uma reunião de quatro ensaios, escritos em momentos diferentes e publicados originalmente em periódicos franceses ou italianos de circulação restrita. E apenas o segundo ensaio (“À procura do verdadeiro São Francisco”) é propriamente biográfico, ou quase.
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Nele, Le Goff não se baseia em pesquisa direta sobre a vida, privilegiando outras biografias e analisando, aqui e ali, documentos deixados por São Francisco. O ensaio é breve, objetivo e tenta encontrar sentidos da ação do santo em meio à complexa trama do catolicismo da época.
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O primeiro ensaio (“Francisco de Assis entre a renovação e os fardos do mundo feudal”) caracteriza o incrível impulso da Europa ocidental no final do século XII, o forte crescimento econômico e a emergência de um novo conceito de cidade — espaço político e comercial que a pregação franciscana identificará prioritariamente e ao qual se devotará.
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Após inserir o personagem Francisco nesse cenário — e com os apontamentos biográficos no segundo ensaio —, Le Goff pesquisa, no terceiro texto, as categorias sociais e o impacto da ação franciscana, segundo a visão de seus precoces biógrafos (a primeira biografia do santo foi escrita apenas dois anos após sua morte), e a construção de modelos culturais derivados do franciscanismo (quarto ensaio).
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O caráter fragmentário do livro mostra, assim, a que veio: o São Francisco que emerge, mais do que o personagem central de uma biografia, é o eixo de uma mudança profunda nas concepções predominantes do cristianismo e, por decorrência, nas práticas sociais do ocidente.
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O balanço da trajetória de um homem decisivo e de seu tempo, nesse sentido, procura definir a perspectiva a partir da qual é possível avaliar o que restou do franciscanismo para os contemporâneos, bem além das bulas papais ou determinações eclesiásticas. Um franciscanismo que foi capaz de corresponder à acelerada mudança histórica que viveu e, ao mesmo tempo, lançar luzes sobre o advento tão futuro da modernidade, insinuada nas práticas que dissolviam as fronteiras entre leigos e religiosos e definiam o valor da experiência e do exemplo.
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O leitor percebe, então, que o fato de não se tratar de uma biografia é secundário: a análise delicada e incisiva do medievalista compõe um panorama do início do século XIII que ultrapassa qualquer perfil individual.
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Ao final do livro, a conclusão é inevitável: a decepção do início foi um erro. E Le Goff, que já havia biografado um outro santo, o guerreiro e heróico Luis IX, mostrou um São Francisco de difícil classificação e, talvez por isso, não captável pelos instrumentos regulares de uma biografia.
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Jacques Le Goff. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2010 (original: 1999; tradução; Marcos de Castro)

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