LIVRO

Benjamin Moser- "Clarice Lispector é mais lida do que Jorge Amado"

por Bruno Vieira Amaral
21.09. 2010

O escritor norte-americano esteve em Portugal para apresentar "Clarice Lispector - Uma Vida" ("Why This World", no original), a excelente biografia da escritora brasileira

Americano, 34 anos, há oito a viver na Holanda, colaborador regular da "New York Review of Books" e da "Harper''s Magazine", Benjamin Moser estreou-se com a biografia de Clarice Lispector, um nome maior da literatura brasileira mas pouco conhecido no mundo anglo-saxónico. Sobretudo por este motivo, o projecto era arriscado, mas a recepção crítica surpreendeu o próprio autor. O "The New York Times", por exemplo, falou de uma obra "ardente" e "intelectualmente rigorosa". Para Moser, "foi uma reacção enorme, que não esperava".

Mas como é que um americano chega até à obra de Clarice e decide escrever a biografia, sabendo que "nem sequer havia uma biografia de um escritor brasileiro em língua inglesa"? A resposta é comum. Tudo começou por acaso: "Eu queria estudar chinês na faculdade - coisa idiota - e fracassei no primeiro ano. Como tinha de fazer outra língua estrangeira, caí nesse negócio sem saber nada de Portugal e sem muito interesse inicial."

Como dá para perceber pelo tempero tropical do idioma, Moser não fracassou na língua portuguesa. É no seu português perfeito que nos explica a entrada de Clarice na sua vida: "No terceiro semestre, uma das obras que lemos foi ''A Hora da Estrela''. Fiquei deslumbrado. Lembro ainda a primeiríssima página que li. Mais tarde, fiz uma viagem de ônibus entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires e comprei ''A Paixão Segundo G.H.'' Dessa viagem a única coisa que ficou comigo foi esse livro. Fiquei enfeitiçado."

A decisão de escrever a biografia não foi imediata. Moser esperou "que outra pessoa a fizesse, mas ninguém fez e sobrei eu". Quando se mudou para a Holanda, começou a reler a obra de Clarice e quanto mais lia, mais fascinado ficava: "Eu queria fazer alguma coisa, mas não sabia como. Nos EUA ninguém sabia quem era Clarice e eu teria de explicar às pessoas essa paixão que tenho por ela."

Foi a própria história de vida da escritora que o motivou: "Tem autores que não são interessantes de um ponto de vista biográfico, mas a vida de Clarice era tão louca quanto a sua obra. É uma vida cinematográfica, dramática. Se você colocasse isso num romance ninguém acreditaria." Não há como não concordar.

De origens muito humildes - no início da década de 20 a família fugiu da Europa para escapar às perseguições contra os judeus - Clarice veio a casar-se com o diplomata Maury Gurgel Valente e viveu em Nápoles, Genebra e Washington. Nessa altura já marcara o seu território na literatura brasileira com o romance de estreia, "Perto do Coração Selvagem".

Uma obra que lhe valeu comparações com Virginia Woolf e James Joyce, apesar de muitos verem Clarice como uma escritora sem cultura, uma "falsa primitiva": "A Elizabeth Bishop [poeta norte- -americana que viveu no Brasil] falou isso, mas a Clarice foi uma das mulheres mais cultas da sua geração. Só que não estava interessada num conhecimento wikipédico, queria um conhecimento mais profundo. A necessidade dela não é artística, é mística, religiosa."

O maior contributo de Moser passa por uma leitura da obra de Clarice à luz da tradição judaica e da própria experiência do povo judeu enquanto povo-mártir: "Tudo o que aconteceu aos judeus historicamente, desde Portugal até à Alemanha, tudo isso lhe
aconteceu pessoalmente. As experiências do exílio e da perseguição foram marcantes."

A mitologia à volta de Clarice é quase tão fascinante quanto a própria vida. Moser não considera que a escritora contribuísse para alimentar o mito, "acontece que ela era mesmo diferente, ela era marcante, bonita, genial, escreveu livros loucos e era natural que uma pessoa tão interessante tivesse esse mito à volta."

Mas será que Clarice é efectivamente lida ou tornou-se num ícone cultural? "Ela virou ícone porque era lida. Não é que as pessoas gostem de Clarice, no Brasil elas amam Clarice." Moser pergunta-nos se ela é conhecida em Portugal. Respondemos que não é desconhecida, mas em popularidade não é Jorge Amado: "Já nem Jorge Amado é Jorge Amado. No Brasil as pessoas lêem-no mas... Clarice agora é mais lida do que ele."
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