A nova batalha pela riqueza imaterial

Revelado o ACTA, acordo internacional que pode vigiar o uso da internet e limitar medicamentos genéricos. Costurado em sigilo por governos e corporações, texto visa frear circulação não-mercantil de cultura e conhecimento, e conter ascensão dos “emergentes”

por Antonio Martins
23.06.2010

Em 21 de abril, veio finalmente à luz um esboço do ACTA, um tratado internacional espantoso. Denominado eufemisticamente Acordo Comercial Anti-Falsificação, negociado em sigilo desde 2004, em comitês que reúnem governos e lobbies empresariais, ele reverterá, se adotado, algumas das principais tendências contemporâneas ligadas à circulação do conhecimento.

Restringirá a troca de bens culturais – música, vídeos, informações – pela internet. Interromperá a produção de medicamentos genéricos. Encarregará as alfândegas de vigiar a suposta violação de propriedade intelectual privada (dando-lhes poderes para reter cargas de produtos “piratas” e mesmo vasculhar computadores e equipamentos tipo Ipod.).

Articulado por alguns dos países e blocos mais ricos do planeta (Estados Unidos, União Europeia, Japão, Suíça, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Singapura, aos quais somaram-se México e Marrocos), o ACTA circula, contudo, à margem de todas as instituições internacionais. Jamais foi examinado pelos Parlamentos dos países que o articulam.

O primeiro rascunho só tornou-se público após vazamentos e pressões de grupos em favor da liberdade do conhecimento. E na agência da ONU encarregada do tema – a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) – debate-se uma agenda de sentido oposto à do acordo.

Este conjunto de contradições sugere: está começando uma batalha internacional intensa para controlar a produção e circulação do imaterial.

A disputa expõe a importância econômica e política dos bens ligados à cultura e ao conhecimento. Desdobra-se em possíveis restrições às liberdades e direitos fundamentais; tende a opor os países ricos aos demais – que terão a companhia de organizações da sociedade civil, inclusive localizadas no Norte do planeta.

Os objetivos essenciais do ACTA foram expostos com clareza num discurso de Barack Obama em 11 de março, durante a Conferência Anual dos Bancos de Exportação e Importação, em Washington.

“Vamos proteger de maneira agressiva nossa propriedade intelectual”, anunciou ele. “Nosso maior ativo é a inovação e criatividade do povo americano. Ela é essencial para nossa prosperidade e será ainda mais, ao longo do século 21. Mas só será uma vantagem comparativa se nossas empresas souberem que suas ideias não podem ser roubadas e copiadas, com insumos e trabalho mais baratos. (…) É por isso que estamos caminhando rapidamente para novos acordos, inclusive o ACTA”.

Para construir a proposta do novo acordo, a “inovação e criatividade” dos norte-americanos não foram convocadas; mas as empresas são parte da trama desde o início.

As primeiras menções ao que viria a ser o ACTA surgiram no I Congresso Internacional sobre a Ameaça Global da Falsificação, realizado em Bruxelas, em maio de 2004. Convocado conjuntamente por instituições privadas (Câmara de Comércio Internacional – ICC, Associação Internacional de Marcas – INTA, entre outras) e públicas (como a Interpol e a Organização Mundial das Alfândegas), o evento suscitou, entre suas recomendações finais, a necessidade de “cooperação mais efetiva entre as partes, nos planos nacional e internacional”, para combater “múltiplas ameaças que afetam o comércio”.

Em outubro de 2006, dois anos e meio depois, a Casa Branca enviou reservadamente, a outros governos, o que já era a primeira versão de um possível acordo internacional. Em fevereiro de 2007, funcionários dos EUA, União Europeia, Japão, Suíça e Canadá reúnem-se, em paralelo a uma reunião da Organização Mundial do Comércio, para tratar do tema.

Em outubro do mesmo ano, os Estados Unidos propõem uma série de reuniões de trabalho, em torno do texto preliminar que formularam – e que já tem o nome de ACTA. Coerente com a postura do governo Bush, o processo exclui a ONU. Os debates se darão em reuniões informais, sem presença incômoda de países em desenvolvimento ou de ONGs e movimentos sociais.

A primeira rodada de reuniões se dá em Genebra, em junho de 2008. Os fatos, então, se aceleram. Em julho, a ACTA é citada no comunicado final da reunião do G-8 (Hokkaido, Japão), que pede “a conclusão das negociações até o final do ano”.

Três novos encontros ocorrem em Washington (julho), Tókio (outubro) e Paris (dezembro), mas o objetivo do G-8 não é cumprido. A eleição de Obama parece desacelerar o ritmo dos trabalhos, retomados apenas em julho de 2009.

Ao todo foram sete, até abril de 2010 (a última delas, em Wellington, Nova Zelândia). Em todas, os governos tiveram a companhia das principais entidades que representam a indústria cultural e do entretenimento. Associações como a Aliança Internacional pela Propriedade Intelectual (IIPA, em inglês), Associação Americana de Cinema e Animação (MPAA), Aliança das Empresas de Software (BSA) e Associação Americana da Indústria da Gravação (RIAA) compareceram aos encontros, debateram documentos, apresentaram reivindicações.

Igual oportunidade não tiveram os demais setores sociais. Além de comunicados oficiais escassos e lacônicos, a única informação disponível sobre o ACTA foi uma sucessão de versões vazadas.

Emblemático sinal: elas não foram publicadas por jornais e revistas do mainstream, mas em sites e blogs de ONGs, acadêmicos e ativistas ligados à luta pela livre circulação do conhecimento.

Entre os principais, estão La Quadrature de la Net, na França ( HYPERLINK “http://www.laquadrature.net/”www.laquadrature.net), Knowledge Ecology International, nos EUA ( HYPERLINK “http://www.keionline.org/”www.keionline.org), PublicACTA, na Nova Zelândia ( HYPERLINK “http://publicacta.nz/”http://publicacta.nz), e o blog do canadense Michael Gest ( HYPERLINK “http://www.michaelgest.ca/”www.michaelgest.ca) – talvez a fonte mais atualizada e completa de informações.

A evidência de que uma agenda crucial estava sendo construída de forma opaca provocou manifestações crescentes de descontentamento. Em setembro de 2008, cerca de cem organizações dos Estados Unidos, Canadá, Coreia do Sul e Austrália lançaram documento público pedindo a publicação oficial dos textos em discussão.

Em março de 2009, o Parlamento Europeu aprovou resolução cobrando da Comissão Europeia “tornar públicos imediatamente todos os documentos relacionados com as negociações do ACTA em andamento”.

Em novembro, uma petição com mesmo sentido foi feita, no Congresso dos EUA, pelos senadores Bernie Sanders e Sherrod Brown. Em 25 de março de 2010, o governo Obama tornou público um rascunho do acordo. Pouco menos de um mês depois (21/4), na sequência da rodada de Wellington, os países envolvidos divulgaram uma versão preliminar oficial.

A análise do teor dos documentos é complexa. As versões sofrem, naturalmente, mudanças, no decorrer do tempo. Além disso, cada uma delas contém, além do texto básico, o registro, em colchetes, das divergências e propostas de acréscimos e supressões apresentadas pelos países participantes.

Nem sempre é possível saber se uma posição expressa no texto básico é majoritária.
Mas o emaranhado dos detalhes não esconde os sentidos essenciais do que está em discussão.

Procura-se controlar, restringir e se possível reverter a circulação não-mercantil de bens imateriais – umas das novidades mais inquietantes e promissoras do início do século.

Busca-se submeter estas trocas a um padrão marcado pela propriedade e pelo dinheiro. Como tal tarefa tornou-se árdua, na era da digitalização e da internet, apela-se frequentemente para medidas que ferem as próprias liberdades civis.

Há um corte geopolítico claro: busca-se preservar a divisão
internacional do trabalho que submete os países do Sul.

Este intento desdobra-se em três grupos de medidas principais. No primeiro, estão as que limitam a circulação de bens culturais na internet. O ACTA incorpora, e procura disseminar, o espírito de leis nacionais recentes (por exemplo, “Lei Hadopi” na França, “Digital Millenium Copyright Act – DMCA, nos EUA, “projeto de lei Azeredo”, no Brasil) que invadem a privacidade dos internautas e permitem excluí-los da rede sem o amparo de decisões judiciais.

As empresas que oferecem acesso à net ou hospedagem de sites são consideradas co-responsáveis pelo material que é armazenado ou circula em seus computadores. Os arquivos que registram a atividade dos internautas (“logs”) são mantidos gravados por longo período.

Os chamados “detentores de propriedade intelectual” – uma gravadora de música ou um estúdio de cinema, por exemplo – podem reivindicar a exclusão de material que afirmem violar seus direitos.

Após um certo número de supostas violações, os “infratores” podem ser temporariamente excluídos da rede. Todos os procedimentos são feitos por medidas administrativas. Incluídos na “Lei Hadopi” francesa, dispositivos semelhantes foram derrubados pelo tribunal constitucional do país. Mesmo assim, constam de diversas versões do ACTA.

O segundo grupo de medidas atinge os medicamentos genéricos. Neste tema, age-se por dois caminhos. Os países signatários são pressionados a manter ou ampliar o alcance de suas leis de patentes – inibindo a produção ou compra de drogas fora do circuito dos grandes laboratórios transnacionais.

Ao mesmo tempo, procura-se legitimar procedimentos controversos, como as retenções, na Europa, de cargas de remédios destinadas a países africanos. Em diversas ocasiões, medicamentos contra AIDS, perfeitamente legais tanto no ponto de origem (Índia) quando nos de chegada – foram apreendidos quando os navios ou aviões que os transportavam fizeram escalas em portos europeus ou no aeroporto de Schiphol (Holanda). Alegou-se que violavam as leis europeias. A Índia protestou, inclusive em organismos da ONU. Pretende-se agora, aparentemente, tornar tais apreensões rotineiras e incontroversas.

A terceira série de propostas do ACTA muda o caráter das alfândegas, hoje um serviço público voltado à proteção das fronteiras políticas e econômicas dos Estados. Se o acordo prosperar, as aduanas acumularão, também, o papel de fiscais da propriedade intelectual de empresas privadas.

Acionadas pelos interessados, e sem necessidade de decisão judicial, poderão ordenar, por exemplo, a abertura de contêineres, para verificar se contêm produtos falsificados. Em certas versões extremadas, presentes nos textos, terão também poderes para adotar o mesmo procedimento nas bagagens pessoais de passageiros.

Nesse caso, examinarão (e punirão) tanto a presença de CDs, DVDs ou objetos contendo marcas “piratas” quanto de arquivos digitais sem-licença, armazenados em qualquer suporte físico (o HD de um notebook, um pendrive, um celular). A evidente dificuldade de fazê-lo é um indicador do desespero a que parece ter chegado a indústria do entretenimento.

Mesmo em suas modalidades menos kafkianas, o texto “é imperialismo sem disfarces”, para James Love, diretor da Knowledge Ecology International. Ele lembra:

“A maior parte dos países hoje desenvolvidos aplicou, durante muito tempo, políticas não-restritivas sobre patentes e direito autoral (…) É o caso da Suíça, que copiou a química alemã no século 19, ou dos Estados Unidos, que não reconheceram, até 1891, o copyright sobre as obras inglesas então predominantes, para oferecer aos editores nacionais receitas provenientes da liberdade de cópia”.
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