De quem é a ideia?

O Ministério da Cultura põe em consulta pública a revisão da Lei de Direitos Autorais, área em que, por sua relevância, o Brasil já encontra meios para reforçar estratégias de negociação comercial.

por Danilo Fariello
29.06.2010

O Brasil esteve muito perto de suspender o pagamento de Direitos Autorais aos Estados Unidos pela exibição de sucessos de bilheteria como “Avatar”.

A ameaça iminente do governo aos criadores do povo Na”vi não tinha relação com rancor pelo engajamento do diretor James Cameron e da atriz Sigourney Weaver na campanha de que participaram contra o leilão da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA).

Em vez de ideologia, a reação foi motivada por subsídios bem materiais do governo americano aos seus produtores de algodão - que restringiam mercado dos produtores brasileiros. Sem o custo do copyright, filmes de Hollywood poderiam ser exibidos a preços módicos em cineclubes espalhados pelo país.

O Brasil elaborou ao longo de dois anos um modelo, inédito no mundo, de retaliação cruzada envolvendo direitos artísticos. O texto da Medida Provisória nº 482, já aprovada, prevê, por exemplo, que se possa exigir registro interno para que tenha validade aqui direito autoral estrangeiro, que sempre teve validade em esfera mundial, não importando onde fosse feito.

Para avaliar o impacto dessas medidas, o Ministério das Relações Exteriores pediu levantamento ao Banco Central e constatou que, em 2008, a transferência de recursos para pagamento de Direitos Autorais apenas de produtos que vêm dos EUA somou US$ 2,359 bilhões. O volume foi considerado suficientemente relevante para fazer parte do pacote de retaliações.

A negociação com os EUA tomou novo rumo, porém, com acordo formalizado na semana passada. O Brasil concordou em suspender, pelo menos até 2012, medidas retaliatórias como aumento de tarifas de importação sobre 103 tipos de produtos americanos, autorizadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Mas agora a retaliação via Direitos Autorais já está prevista legalmente no Brasil, podendo ser aplicada em qualquer negociação internacional futura.

Os Direitos Autorais entraram no cenário de acordos multilaterais com a era digital, na última década, e com a possibilidade de se fazerem retaliações cruzadas - em setores distintos dos atingidos por barreiras, tarifárias ou não -, afirma Marcos Alves de Souza, coordenador de Direitos Autorais do Ministério da Cultura.

Como a informação passou a circular de forma mais fluida e com menos controle entre países, o que é acompanhado pelo avanço da pirataria, cresceram as preocupações com a questão dos Direitos Autorais, diz Kenneth da Nóbrega, chefe da Divisão de Propriedade Intelectual (Dipi) do Itamaraty.

Nos últimos anos, a propriedade industrial já foi alvo de pedidos de retaliação, por exemplo, na quebra de patentes de remédios. Mas o direito artístico era tema intocável nesse ambiente de conflitos comerciais, embora o Brasil não seja o primeiro país a colocá-lo na pauta externa.

Nóbrega afirma que as regras de Direitos Autorais têm dois pilares. De um lado, o controle e a proteção dos direitos. De outro, as exceções, que permitem a inovação e a disseminação de conhecimento, por exemplo, pelas citações de obras como um remix de uma música ou um Livro que avança em tese anteriormente defendida.

“Mas as normas de proteção tiveram origem no séc. XIX, e o mundo digital traz uma necessidade de atualizações intensa”. E as quantias que circulam para pagar copyrights nunca foram uma leve sombra do que são nestes tempos da internet rápida, o que também suscita as revisões e os conflitos.

Por esses motivos - e por conta da crise existencial de editoras e gravadoras com a disseminação da PIRATARIA -, diversos países, como o Brasil atualmente, reveem suas leis sobre Direitos Autorais.

Na semana passada, o Ministério da Cultura brasileiro abriu, para consulta pública, o texto de reformulação da Lei de Direitos Autorais, que determinará, entre outros aspectos, novas formas de relacionamento entre autores e intermediários.

Recentemente, União Europeia, EUA, Canadá, Austrália, entre outros países, discutiram ou discutem regras de copyright. Na Europa, criadores, consumidores, provedores de internet e defensores de direitos digitais publicaram em maio manifesto defendendo sistema que fomente a criatividade.

Para eles, as exceções ao copyright são a chave para permitir reutilizações legítimas e inovações.
Segundo estudo da Tera Consultants, contratado pela União Europeia, em 2008, a produção criativa da região - que inclui softwares - chegou a € 560 bilhões, ou 4,5% de toda riqueza gerada na comunidade.

Faltam, porém, estimativas precisas sobre o volume de recursos em Direitos Autorais no mundo, sendo qualquer palpite questionado por diversas instituições. Internamente, o governo brasileiro tem estimativa extraoficial de giro de US$ 600 bilhões em Direitos Autorais ao ano no mundo, valor que cresce aceleradamente.

Debates em fóruns multilaterais também foram abertos ou retomados para discutir o tema recentemente. Além da OMC, o Direito Autoral é discutido no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). Mas EUA e União Europeia costuram um acordo por fora com outros países, o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (Acta).

Na OMC, o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Trips, em inglês), de 1995, é considerado defasado e abrangente demais. O Trips é mandatório nos direitos, mas seus limites são apenas facultativos, variando em cada país.

Para a alteração do acordo, seria necessário consenso entre as partes. Por isso, os países passaram a negociar atualizações em fóruns mais flexíveis, comenta Samuel Barrichello, coordenador-geral de regulação em Direitos Autorais do Ministério da Cultura.
A Ompi, onde também vigora o consenso, possui o cronograma mais ativo de negociações multilaterais sobre propriedade intelectual.

Ali, países desenvolvidos e em desenvolvimento podem assumir posições opostas, mas mantêm reuniões semestrais, como a realizada esta semana. Foi na Ompi que surgiu, em 1996, a “medida tecnológica de proteção”, que permite a uma gravadora adotar sistema que impede cópia de CDs ou a um provedor de internet liberar arquivos para só um computador ou vetar reprodução em papel, em qualquer lugar do mundo.

O Brasil não aderiu a essa norma, mas sofre suas consequências. Se alguém compra um CD importado, por exemplo, não pode reproduzi-lo aqui. Da mesma forma, há sites estrangeiros que impedem a impressão de suas páginas.

Alheio às decisões da Ompi, o Acta começou a ser debatido, de forma sigilosa, em junho de 2008, e seu rascunho inicial ganhou publicidade apenas em abril. Pelo texto, os países aderentes têm de implementar regras mais rígidas de proteção e reforçar os direitos de propriedade intelectual.

Apesar de restritas a alguns países, as decisões do Acta, se vierem a se tornar efetivas em acordo, poderiam afetar o comércio internacional. Exemplos: poderia haver maior controle sobre a música do cantor europeu cujo álbum é comprado no Brasil ou do conteúdo de um MP3 player ou um notebook que um turista brasileiro carregue consigo em viagem para fora.

Os Estados Unidos, onde se encontram as maiores gravadoras e produtoras de filmes, estão entre os mais duros na negociação sobre o tema, impondo restrições e controles mais rigorosos dos Direitos Autorais.

A França adotou recentemente a lei mais polêmica sobre o tema, chamada de Hadopi, que se baseia na política conhecida como “three strikes”: se registrado download ilegal de conteúdo por três vezes, o internauta pode ser totalmente derrubado da rede por um tempo. Por aqui, teme-se que algo nessa forma vire regra mundial no Acta.

Como partidário de uma renovação menos conservadora das regras globais - que permita furos nos Direitos Autorais para educação, inovação, entre outras finalidades -, o Brasil tem defendido na Ompi as limitações a direitos.

Em consonância com a lei proposta internamente, que foi a consulta pública neste mês, o governo quer promover estímulos para a indústria criativa nacional e à disseminação mais flexível da informação, em detrimento do direito privado restrito ao extremo, comenta Souza, do Ministério da Cultura.

Mas a posição brasileira também suscita controvérsias. Deveriam ser preservados ao máximo os direitos privados dos autores, na medida em que o retorno financeiro é sua motivação maior e as empresas têm amparado seu patrimônio cada vez mais em elementos intelectuais e tecnológicos, em vez de máquinas e equipamentos, diz Eduardo Dinelli, advogado especializado em Direitos intelectuais.

“Há empresas brasileiras que exportam software para o mundo todo. Por isso é preciso balancear os interesses do autor, do consumidor e do Estado.” Mas o lobby das empresas brasileiras é relativamente mais fraco do que em outros países, onde detentores de Direitos Autorais têm mais força na formulação de políticas públicas.

Na tentativa de relativizar essa visão do Direito Autoral como instituição privada livre de exceções, o Brasil resolveu adotar uma bandeira politicamente correta e, portanto, com pouca margem de questionamento.

Nesta semana, representantes do país levaram à reunião da Ompi, em Genebra, proposta de cronograma de debate para assegurar a flexibilização de cópias de livros para versão áudio e Braille. Recentemente, uma interrupção na oferta de livros na versão áudio do Kindle, leitor eletrônico da Amazon, gerou inquietação internacional sobre o assunto.

Essa posição tem amparo da World Blind Union (WBO), a associação mundial dos cegos, e facilitaria o acesso dos deficientes à informação restrita àqueles com boa capacidade visual. Além de ser dificilmente questionável, a proposta encontraria respaldo em políticas da ONU que visam oferecer amparo a pessoas com qualquer deficiência física. “Essa não é uma questão de Direito Autoral, mas de direitos humanos”, afirma Souza.

Para Nóbrega, do Itamaraty, mesmo com a ameaça do Acta ou com o posicionamento mais duro dos países desenvolvidos nos acordos que tratam de copyright, existe hoje um ambiente mundial favorável à adoção de cada vez maiores limitações às regras de proteção, como pode ser percebido no manifesto europeu.

Mesmo grandes universidades americanas, como Yale e Harvard, já criticam dificuldades para reproduzir obras que seriam usadas como base para inovações científica ou tecnológica. “Percebeu-se que não há uma solução simplificadora para o tema e que, portanto, as restrições de direitos têm de ser bem avaliadas e discutidas, e que podem ser questionadas internacionalmente”, diz Nóbrega.
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