Consumo, Comunicação e Cidadania

por Renata Maldonado da Silva Lyra

Resumo
Este artigo discute a importância do consumo, enquanto permeador do conjunto de crenças e desejos existentes na sociedade urbana brasileira, no que se refere aos aspectos comunicacionais do direito à cidadania. Percebeu-se que a importância das práticas de consumo nas relações comunicacionais vem se acentuando nas últimas décadas. Constatou-se que as mídias, principalmente através do discurso publicitário, foram responsáveis pela relativa unificação do campo simbólico do consumo no Brasil.

Introdução
O tipo de consumo que aqui referido, embora possua também atributos simbólicos, tem natureza diferenciada. Não se pode descartar a importância da publicidade, que é um dos elementos formadores dos comportamentos de nossa época, como auxiliar nas supostas ‘escolhas’ feitas pelos grupos sócio-culturais.

No Brasil, a televisão e os demais meios de comunicação, através do discurso publicitário direto e indireto, exercem grande pressão para que consumamos. A necessidade de adquirir mercadorias e serviços é atualmente produzida com grande força, através da relação existente entre as mídias e a sociedade.

O desejo de consumo reproduz-se segundo a estruturação social. Esta está sempre em constante movimentação e interage com as construções de natureza ideológica e com suas relações – representações mentais -, mesmo que distorcidas, da materialidade social.

Nestor Garcia Canclini (1999) considerou o consumo como uma das dimensões do processo comunicacional, relacionando-o com práticas e apropriações culturais dos diversos sujeitos envolvidos neste sistema. Afirmou que por meio dele os sujeitos transmitem mensagens aos grupos sócio-culturais dos quais fazem parte.

Segundo Canclini, o consumo não deveria ser visto somente como uma posse de objetos isolados, mas também como “apropriação coletiva” destes. Este processo consideraria relações de solidariedade e, principalmente, de distinção, através de bens e mercadorias que satisfazem no plano biológico e no simbólico, servindo também para enviar e receber mensagens.

Jean Baudrillard foi, salvo engano, um dos primeiros autores contemporâneos a abordar o problema teórico do consumo.

Em sua análise, acreditou na existência de uma “sociedade de consumo”. Segundo ele, viveríamos em um contexto onde o consumo invade a vida das pessoas, suas relações envolvem toda a sociedade e as satisfações pessoais são completamente traçadas através dele.

Baudrillard defende que desenvolvimento se estabelece através da incessante produção dos chamados bens de consumo duráveis, tais como os automóveis e os eletro-eletrônicos. Embora estes produtos tenham hoje uma qualidade maior, é uma exigência do sistema que possuam durabilidade ou obsolescência programadas para que sejam novamente adquiridos e substituídos em uma autêntica roda-viva.

De acordo com Baudrillard, no consumo estariam baseadas as novas relações estabelecidas entre os objetos e os sujeitos. Segundo ele, neste campo, a importância dos objetos cada vez mais é valorizada pelas pessoas.

Nesta nova ordem social, o consumo existiria com maior força de expressão do que no passado, principalmente através do conjunto de crenças e desejos presentes na sociedade. Trata-se de um sistema no qual os sujeitos encontram-se mergulhados. No plano simbólico, o consumo atinge a todos, pois as classes médias e os trabalhadores mais pobres sofrem o mesmo tipo de pressão para que consumam.

Ambos desejam ou necessitam desejar a participação neste mesmo sistema, independente de suas condições materiais.
As mídias foram responsáveis pelo processo de relativa unificação do campo simbólico do consumo, por meio da difusão das mercadorias consideradas consensualmente como objetos de desejo.

No Brasil, a partir da década de 1960, a televisão foi se impondo como um meio de comunicação hegemônico. Atualmente, aproximadamente 98% dos lares brasileiros possuem pelo menos um televisor. Isto possibilita que haja uma uniformização dos padrões referenciais de consumo, nos quais praticamente as mesmas mercadorias seriam desejadas, independente do grupo ao qual o indivíduo pertença.

No passado, havia maior distância simbólica entre a vida dos operários e a das classes médias, por exemplo. Hoje, no entanto, um trabalhador manual e um médico almejam comprar os mesmos produtos que são veiculados para ambos através da publicidade. As mídias aproximaram o universo dos diferentes setores sociais, tornando-os membros do mesmo sistema simbólico.

Pierre Bourdieu (1979) analisou como o consumo de bens culturais e de mercadorias na França seria determinado pelas características de classe, como grau de instrução e a origem social. Não se descarta que os grupos sócio-culturais possam criar representações acerca do consumo que estariam relacionadas à sua posição na sociedade.

Isto explicaria porque pessoas pertencentes a um determinado grupo valorizam determinado tipo de mercadoria em detrimento de outro.

No entanto, no chamado Terceiro Mundo, o grau de unificação cultural é muito mais acentuado. As classes médias têm origens mais modestas e não raro são recrutadas entre os filhos e netos dos trabalhadores manuais.

O esquema explicativo do sociólogo francês, portanto, não se aplica integralmente ao Brasil, onde a ação dos meios de comunicação introduziu uma certa padronização nos comportamentos. As elites e classes médias francesas, por exemplo, têm séculos de história, e já desenvolveram hábitos culturais que as tornam distintas dos demais setores sociais. É comum que os mais abastados brasileiros compartilhem práticas culturais das classes mais pobres, como o funk music ou as telenovelas.

De acordo com Baudrillard, o consumo não pode ser definido nem pela sua capacidade de absorção, nem como uma mera satisfação de necessidades. Se assim fosse, deveria chegar a um ponto de saturação. Segundo ele:

“É preciso que fique claramente estabelecido desde o início que o consumo é um modo ativo de relação (não apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de atividade sistemática e de resposta global no qual se funda nosso sistema cultural”.

O consumo pode ser definido como “uma prática idealista” que vai além da relação com os objetos e com os indivíduos, se prolongando para todos os registros históricos, comunicacionais e culturais. Nele, os signos devem se reproduzir infinitamente para que possam preencher uma realidade ausente.

Por isto, de acordo com o autor, sua lógica não é pautada pela presença. Assim, o simples desejo de consumir, o sonho de possuir determinado objeto, produz intensas sensações que povoam o simbólico contemporâneo.

De acordo com o mesmo autor acima citado, a sociedade de consumo, em texto publicado originalmente em 1970, seria uma “recusa do real”. Esta sociedade sofreria os efeitos da atuação dos meios de comunicação de massa, que foram considerados geradores de uma “vertigem da realidade”.

O autor partiu do princípio da existência de uma dualidade do mundo, na qual o simbólico e o material seriam componentes com baixo nível de conexão. Nesta mesma obra, percebem-se indícios da sua futura teoria do simulacro (1991), desenvolvida, tendo como um dos seus objetivos, o de analisar a influência das mídias na sociedade.

A importância aparente do consumo seria relacionada aos aspectos ideológicos desta nova fase do capitalismo.

Na visão de acordo Jacob Gorender (1999), poderia ser definida como:
“A sociedade capitalista se apresenta como sociedade do espetáculo, tal qual definiu Debord. Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição. A ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo.

O reino do capital fictício atinge o máximo de amplitude ao exigir que a vida se torne ficção de vida. A alienação do ser toma o lugar do próprio ser. A aparência se impõe por cima da existência. Parecer é mais importante do que ser”.
Este autor, inspirado no marxismo clássico, percebeu a superficialidade desta nova cultura que vem se firmando na sociedade contemporânea.

Desta forma, o poder de sedução do consumo está presente justamente na relação dialética estabelecida entre aparência e realidade, entendido por ele como a materialidade.

O sistema de consumo é criado a partir da sua interação com a sociedade. Sua separação, estabelecida entre o simbólico e o material, é ilusória, visto que ambos se compõem dos elementos existentes na mesma realidade.

A resposta que os indivíduos darão ao consumo se efetua a partir da relação entre seu universo simbólico e a vinculação deste com a realidade material.
Em nenhum momento na história da humanidade o consumo caracterizou-se pelos seus aspectos puramente econômicos. Sua importância cultural e representacional sempre esteve presente.

Com o incremento da produção de mercadorias, este processo foi ainda mais incentivado, tornando-se parte da cultura contemporânea.

Os aspectos culturais do consumo foram tratados por Mike Featherstone, afirmando a existência de uma chamada “cultura de consumo”. Nesta obra, foi dito que as mercadorias e a forma como estas se estruturam são questões centrais para a compreensão da sociedade contemporânea.

Destacou a existência de uma dimensão cultural da economia, sendo os símbolos e o uso de bens materiais também “comunicadores” . O autor percebeu que, hoje, o consumo adquiriu uma importância cultural nunca antes vista.

Tornou-se, em alguns casos, mais importante do que sua dimensão puramente econômica.

O consumo e as mercadorias
A mercadoria é um elemento central na economia capitalista. Sua importância vem sendo mencionada desde o séc. IX. Karl Marx, em " Capital"(1867), já havia atentado para seu caráter fetichista. Discutiu os dois principais valores nela embutidos: o de uso e o de troca, analisando o modo como estes se constituíram.

Segundo ele:
“(...) a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com a sua natureza física e com as relações materiais que daí se originaram. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.

Marx mencionou que as relações estabelecidas entre as mercadorias e os sujeitos seriam um dos indicadores do seu valor. Percebeu que “o caráter místico da mercadoria não provinha, portanto, de seu valor de uso”. Contudo, sua importância simbólica foi destacada de acordo com o contexto histórico em que o texto foi escrito.

Este problema foi também analisado por Jean Baudrillard , para quem a existência dos objetos (nome dado às mercadorias disponíveis) não é condicionada unicamente para que eles possam ser possuídos e usados, mas, principalmente, para serem produzidos e comprados.

Uma das contribuições do sociólogo francês foi a de chamar atenção para a existência do valor simbólico. Este, em determinadas condições, pode ser mais importante do que os valores tradicionais estudados pela economia clássica. Em inúmeros casos, é fácil identificá-los, lembrando que são socialmente diferenciados. Isto é, o mesmo bem pode ter valores diferentes em grupos sócio-culturais distintos.

De acordo, ainda, com Baudrillard, qualquer bem, para que seja consumido, deve se transformar primeiramente em signo. Sendo assim, as relações de consumo modificariam-se, ultrapassando o âmbito dos objetos e dos indivíduos, e definindo-se como uma ideologia.

O consumo consistiria em uma relação ativa, estabelecida entre objetos, sujeitos e o mundo. Seria detentor de uma lógica própria, sendo parte do sistema cultural. Iria além de um simples processo de satisfação das necessidades de uso e troca. Tratar-se-ia de uma atividade no domínio da manipulação dos signos.
Segundo Baudrillard, o consumo seria definido como um estágio intermediário entre a produção e a destruição dos signos. O seu sentido define-se através desta relação.

O discurso publicitário e o consumo
A mídia, através da publicidade, é um dos fatores mais importantes na determinação do comportamento dos indivíduos quanto ao consumo. A todo tempo ela ‘induz’ as necessidades, mas, na maior parte dos casos, o faz considerando o conjunto da realidade econômica e cultural. Os anúncios publicitários terão maior ou menor sucesso comercial a partir do nível de suas correspondências com o entorno social.
Os desejos de consumo não são naturais. A construção destes admite modificações constantes.

Jean Baudrillard, em sua análise sobre a publicidade, afirmou que ao mesmo tempo em que ela é um objeto, também é um discurso. Considerou que esta é um elemento central do que chamou de “sistema de objetos”. Suas principais funções são as de divulgar as características dos objetos (mercadorias) e promover sua venda.
Segundo o mesmo autor, a mensagem publicitária não convenceria aos indivíduos. Funcionaria como uma espécie de fábula, na qual as pessoas não estariam preocupadas em analisar a veracidade do seu discurso. Na verdade, elas seriam seduzidas por este.

De acordo com Baudrillard, a publicidade atuaria diretamente no plano das crenças e dos desejos dos grupos sócio-culturais. Ainda, de acordo com o autor francês, “a publicidade é antes consumida do que destinada a dirigir o consumo”.

O corpo, as mídias e o consumo
O corpo foi transformado em um dos símbolos e objetos vendáveis e cultuáveis do mundo capitalista. Segundo Baudrillard, o sistema de produção induz nos sujeitos uma dupla prática: a do corpo como capital, isto é, como o finalizador do processo de produção, e como fetiche, sendo ele o próprio objeto de consumo.

O socialismo e o consumo
O fim do socialismo real, exemplificado pela queda do muro de Berlim, foi um dos elementos que reforçaram o processo de consolidação internacional do capitalismo. No ano de 1989, foi amplamente divulgado pela mídia o desejo de alguns setores sociais do Leste europeu em terem acesso às chamadas maravilhas do consumo.

Foram ‘percebidos’ somente seus aspectos positivos, como os ícones e as mercadorias do mundo capitalista. O que Gorender denominou de “capitalismo real”, isto é, o desemprego, os bolsões de miséria, a exclusão, a opulência e o luxo de poucos, a corrupção e o crime sem fronteiras, entre outros, estão sendo conhecidos na etapa atual.

O desejo das populações do Leste europeu em terem acesso às mercadorias do mundo capitalista também pode ser considerado como um dos elementos determinantes para a derrocada do socialismo real.

Não se descarta que as próprias contradições internas deste sistema
contribuíram para sua destruição. A existência de uma economia excessivamente planificada e pouco distributiva, além do surgimento de uma nova classe dominante composta por burocratas, militares e membros dos partidos comunistas – possuidores de vários privilégios – foram fatores importantes para o desgaste do modelo em vigor.

As conquistas de maior valor simbólico do mundo socialista, tais como trabalho, educação e saúde para todos foram minimizadas e desmoralizadas pelo fracasso do socialismo realmente existente.

Com o tempo, constatou-se que isto era mais discurso ideológico do que uma realidade inquestionável. Por conseqüência, o estilo de vida pregado pelo capitalismo foi naturalizado, sendo aceito como o único possível.

rmslyra@uol.com.br